Otelo no CPCD

Tudo começou com um colega, Miguel Lourenço, a contar detalhes dos seus ensaios de teatro. A minha curiosidade e o empenho dele nos ensaios fez-me inquirir se tinham fotógrafo e oferecer os meus serviços.

Acabei por fotografar dois ensaios de seguida na Parede, levando familiares comigo (Augusto e Aline) para rentabilizar a viagem. A Aline adorou, e o grupo gostou das fotografias. Depois, foi a família inteira ver o espectáculo. Embora seja um grupo de amadores, vários elementos têm formação superior em teatro e gostariam de viver dele. A peça é vivida, e não apenas declamada.

Preparação

Embora a SMUP tenha um palco, a peça é encenada no chão. Ora, o CPCD tem chão. Sugerimos que a peça poderia ser reposta no CPCD. Normalmente, o grupo actua apenas na Parede e no Teatro Turim, mas tem todo o interesse em se dar a conhecer numa zona diferente da grande Lisboa. Para mitigar o risco do grupo, negociámos um preço fixo, correspondente a uma sala bem cheia de 50 espectadores.

Nos meses antes do espectáculo, a Aline trabalha para diminuir o risco financeiro, conjugando várias boas vontades. A escola de música Nova Geração oferece uma guitarra, alguns cabeleireiros ajudam a vender rifas (MJbrás Cabeleireiros e Rosa Cabeleireiro). Cria-se um segundo espectáculo para o sorteio da guitarra: o grupo de jovens Rumo à Vida de São João dos Montes aceita vir cantar ao CPCD, e conjuga-se uma exposição da ARIPSI na mesma altura. Com a ajuda da comunidade, vendem-se 134 rifas e consegue-se assim angariar metade do custo do teatro.

Para evitar que a sala fique vazia, a Aline distribui convites entre as empresas locais que têm apoiado o CPCD no passado, normalmente o futebol ou as festas populares. Os patrocinadores habituais estranham a atenção mas agradecem. Alguns dão os convites a clientes especiais. Todos ajudam a divulgar a peça.

Ensaio

A Sexta-feira anterior é dia de ensaio geral. O encenador e os actores chegam a meio da tarde, vêm o salão do CPCD pela primeira vez. Colocam as cadeiras, duas filas à largura da sala, mais duas filas em cima do palco móvel do CPCD.

Minuciosamente, encenador e actores fazem marcações no chão com fita de pintor. Cinco projectores de 500W transformam o espaço. Dois projectores de cada lado (amarelo e vermelho), em diagonal, mais um no balcão (vermelho). A parede branca faz sombras ainda melhor que a SMUP. No dia seguinte, acrescentam um projector branco a meio do palco.

Infelizmente, falta a protagonista, pois também participa noutra peça. Foi a grande oportunidade de o encenador se divertir, substituindo-a no papel de Iago, num ensaio “italiano” em que os textos são simplificados ou ditos tão depressa quanto possível, a uma velocidade esfuziante. Testam as posições, os tempos de entrada e saída. Ao contrário da SMUP, têm de entrar em palco vindos de detrás dos espectadores.

Fotografia do ensaio

Aproveitei o ensaio para tirar mais algumas fotografias, especialmente para recordar a peça no espaço do CPCD. Mas as sombras proporcionam excelentes fundos aos actores, melhores que na SMUP, e tenho mais sítios onde me posicionar. Fotografei com todas as minhas objectivas fixas: 20mm f/2.8, 40mm f/2.8, 50mm f/1.4 e 85mm f/1.8. Tirei 298 fotos, escolhi 99, publico 47.

Espectáculo

No dia do espectáculo, o segundo ensaio atrasa-se enquanto arranjam as marcações estragadas no chão e tentam montar um projector azul no balcão, sem sucesso. Acabamos por jantar bifanas no bar enquanto o grupo ensaia com a Daniela, a protagonista que não veio no dia anterior.

A primeira espectadora chega às 20h25 ao bar. Veio a pé. Tem um convite que lhe foi oferecido por um dos patrocinadores. Diz que não iria ver o teatro a Lisboa, mas fez questão em ver uma peça na sua própria cidade.

A Mariana e a Argentina vendem os bilhetes enquanto o grupo janta na sala do antigo bar do CPCD. O átrio enche com 48 espectadores. Vamos ter sala cheia! Pensamos em adicionar cadeiras, mas não pode haver mais lugares, senão os espectadores em terceira fila já não conseguirão ver bem o espectáculo.

Surpreendentemente, apenas 40% têm convite; a maioria é “público verdadeiro” a pagar bilhete. Vieram pessoas da margem Sul, de Loures, de Vialonga, de São João dos Montes. Descobrimos que vieram três pessoas de Vialonga por causa de uma notícia no jornal Dica do Lidl.

A Daniela vem cá fora chamar o público. Diz para desligarem telemóveis e que não poderão fotografar no espectáculo. Subitamente volta para trás e, de forma arrogante, diz que quem quiser a pode fotografar a ela no átrio. O público estranha, só mais tarde vai perceber que a peça já começou no átrio, que já estão perante a personagem Iago.

Os espectadores entraram rapidamente, sentaram-se ordeiramente. Sentei-me numa ponta do palco para apreciar bem as sombras. Houve um espectador que entrou depois da peça começar. Minutos depois, deixou tocar o telemóvel. Duas vezes.

O presidente do CPCD, Manuel Alfaiate assiste ao início da peça, mas sai pouco depois porque este não é o tipo de teatro que gosta. Prefere humor e revista.

No fim da peça, apanhámos uma única espectadora a dizer que não tinha gostado. Mas a maioria disse explicitamente que gostou, incluindo publicamente no Facebook. Nos dias seguintes, via correio electrónico, vários espectadores manifestam interesse em saber de peças futuras.

Conclusão? Existe público!

O CPCD assumiu o risco financeiro de repor a peça, desdobrando-se em actividades para envolver a comunidade e mitigar os riscos. Felizmente foi uma aposta ganha:

  • A maioria dos bilhetes foi vendida, provando que existe público disposto a vir à Póvoa de Santa Iria para este tipo de teatro. Pelo menos 11 espectadores vieram de fora da cidade.
  • Embora tenham sido convidados muitos patrocinadores e apoiantes do CPCD (foram 48 convites duplos), só alguns é que vieram. Outros deram os bilhetes. Mas todos falaram sobre o assunto e divulgaram a peça.
  • O salão do CPCD tem potencialidade para teatro sério. Uma parede branca pode ser pintada pela luz. O espaço foi transformado.
  • Embora a antiga sala do bar tenha sido usada pelos actores, faria sentido tê-la usado como sala de espera, especialmente se o antigo bar estivesse a funcionar.
  • O CPCD não tem tradição de teatro “sério”. Em particular, o presidente do clube não gosta deste tipo de teatro, e acha que a peça não foi para os sócios do clube.

Mas a população da Póvoa de Santa Iria tem aumentado nas últimas décadas e inclui cada vez mais pessoas com formação secundária e superior. Existem outros gostos. Talvez o CPCD deva acolher mais sócios? Talvez o CPCD deva trabalhar para toda a comunidade, e não apenas para os sócios?

Sabemos que existe público. Haja coragem para evoluir com a cidade.

Referências

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