Ensaios de Otelo na SMUP

A convite do Miguel Lourenço, um novo colega que faz teatro amador na Sociedade Musical União Paredense, fui fotografar os dois primeiros ensaios corridos da peça Otelo, de Shakespeare, nas noites de 3 e 4 de Maio.

Encontrei uma equipa coesa de sete pessoas, com uma representação emotiva, um eficaz cenário minimalista onde cadeiras e tábuas são criativamente montados e iluminados, delimitando espaços diferentes ao longo do tempo.

Porque é que continuamos a representar Shakespeare? Porque as pessoas não mudaram assim tanto. Enquanto houver intriguistas, há Otelo. “Iago rules!”

Convite

Tenho um novo colega que faz teatro amador há 10 anos na Sociedade Musical União Paredense (SMUP), onde já chegou a ser dirigente. Ao almoço, fala frequentemente dos ensaios, que lhe ocupam algumas noites.

Quando se aproxima a estreia da peça, pergunto se faria sentido fotografá-los. Já tiveram fotógrafos, mas não têm um fotógrafo oficial. Vai perguntar ao encenador. Ofereço as minhas fotografias de teatro como portfólio. O encenador aceita.

Discutimos a melhor oportunidade para fotografar. Uma semana antes da estreia, começam os ensaios corridos. Sábado será o primeiro, mas só no Domingo terão a luz. Por razões familiares, decido ir no Sábado, que o Domingo pode falhar.

Num almoço de família, converso com o meu cunhado Augusto, que já teve a sua experiência de teatro absolutamente amador, e que gostaria de fazer mais teatro. Seria interessante ele ver um encenador a ensaiar, que foi um luxo que não tiveram. Pergunto ao Miguel se posso levar o Augusto; ele responde que o encenador só exige que quem seja convidado tenha uma “boa onda”.

Primeiro ensaio

No Sábado, 3 de Maio, vou com o Augusto até à Parede. A SMUP fica muito perto da estação de comboios da Parede, numa zona de ruas de sentido único. Mas o Miguel ensinou-nos bem o caminho: vindos de Lisboa pela Estrada Marginal, entramos na segunda rotunda de Carcavelos, depois seguimos paralelos à linha de combóio até à Parede. Às 20h50, encontramos os actores em amena cavaqueira nas traseiras da SMUP. Assim que perceberam que havia um fotógrafo, as actrizes queixaram-se: se soubesse, tinham-se maquilhado.

Entramos para uma sala de espectáculo tradicional, com palco e balcão, chão de madeira ocupado por uma rede de badmington. Mas a peça será no chão da sala e não no palco. Rapidamente, o grupo desmonta a rede, coloca cadeiras e bancos laterais, monta projectores no chão.

Reparo que uma das actrizes actriz pega numa esfregona e começa a limpar meticulosamente o chão do palco. É uma tarefa “menor” feita espontaneamente, sem negociação, sem discussão. Numa equipa saudável, nenhuma tarefa é pequena demais. Dias mais tarde, a actriz colocará esta foto na sua página de Facebook.

A descrição que o Miguel tinha feito da peça tinha-me preparado para o pior. Em vez da peça Otelo, será uma meta-peça em que um grupo de actores encena a peça Otelo. Normalmente, irritam-me as histórias de criadores a falar sobre o seu próprio mundo. Mas estou aqui para fotografar o meu colega e o grupo; a qualidade da peça é pouco relevante.

Mas, quando o ensaio corrido começa às 21h20, as emoções transbordam dos actores e entram pela lente dentro. É Shakespeare, vivido e não apenas declamado. A luz constante mas colorida já é suficiente para criar ambiente. Os adereços de cena, num total de 5 tábuas, 4 cadeiras e uma vela, assumem 10 posições diferentes ao longo da peça. Foram 90 minutos de emoções à flor da pele.

Os actores actuam descalços no chão de madeira, fazendo-me estabelecer paralelos mentais entre a sua actuação e os treinos de Kata no Karate. Em ambos os casos, há um treino sistemático, e quando se atinge um certo nível, há um nível seguinte de exigência na mesma peça ou Kata.

A meta-peça revela-se um artifício inteligente para encenar o Otelo com menos actores. Algumas cenas são vividas directamente pelos actores, outras são apenas lidas ou mencionadas pelos actores. Instala-se a confusão criativa entre a peça e a meta-peça, com o cúmulo na cena em que o meta-Otelo hesita entre matar o Iago e despedir a meta-Iago.

Às 22h50, o encenador pediu a nossa opinião de espectadores, especialmente a do Augusto. O Augusto viu mais hesitações nos actores que eu, mas ambos gostámos da peça, e percebemos bem o que os actores disseram. O encenador realçou a importância do Augusto. Ter um único espectador tinha sido suficiente para deixar os actores nervosos, contribuindo para um primeiro ensaio corrido mais realista.

Poderíamos ter saído depois de darmos a nossa opinião, mas achei que o Augusto quereria ver o encenador a trabalhar com os actores. E achei que gostaria de fotografar esse “depois”.

Observar a interacção entre os actores e o encenador foi extremamente educativo. Na opinião do encenador e dos próprios actores, o ensaio tinha corrido muito mal. Durante a hora seguinte, o encenador releu as suas notas técnicas e discutiu com os actores a melhor forma de melhorar vários pormenores.

Em algumas situações, os actores desatavam a repetir partes do diálogo (comodamente sentados mas suas cadeiras) num processo estonteante de observar. O encenador também falou várias vezes das sombras criadas pelos actores, que percebi serem uma parte intencional da peça.

O que vi foi o culto da melhoria contínua que considero fundamental para chegar a um nível excepcional, seja em que domínio for.

Voltei para casa já depois da meia-noite com vontade de fotografar no dia seguinte, ganhando a maquilhagem, as roupas, as luzes, e também a minha própria experiência.

Fotografia do primeiro ensaio

No Sábado, a luz era constante, mas focada no meio do palco. Havia três projectores colocados no chão, mais um a iluminar o fundo do palco.

  • No meio do palco, os actores ficavam bem iluminados.
  • À esquerda, a luz tornava-se fortemente amarela.
  • Ainda mais à esquerda, os actores ficavam na sombra.
  • À direita, a luz tornava-se quase totalmente vermelha.
  • Ainda mais à direita, os actores ficavam na sombra.

A máquina lutou para fotografar nesta luz variável com domínio de vermelho. Nas pontas dos palcos, as caras dos actores ficaram frequentemente sobe-expostas, contrastando a amarelo ou vermelho com roupas escuras. A Cânon 5D mark II tem um ponto fraco: a medição da luz vermelha. Tirei 569 fotos, e mesmo assim metade delas ficou minimamente aproveitável. Dei 263 fotos aos artistas, mas publico apenas 50.

Segundo ensaio

Por razões familiares, voltei no dia seguinte com a Aline, para evitar atravessar duas vezes Lisboa de ponta a ponta.

Encontro o palco marcado com fita preta, mais as letras “Iago rules” numa das tábuas. O encenador senta-se numa mesa ao canto do palco e controla as luzes.

Noto uma evolução nítida de um dia para o outro. As emoções tornaram-se mais fortes. A luz tornou-se quase um actor extra, com um vermelho profundo a realçar as cenas malvadas.

A Aline adorou. No fim da peça, nem precisou que lhe perguntassem nada, começou imediatamente a dizer o que pensava e sentia. Tínhamos ido para a Parede a falar do nosso próprio Iago, por isso a Aline viveu a peça com especial intensidade.

Se no dia anterior, o encenador deu uma nota de 5/10, no Domingo deu 8/10. Mesmo assim, apontou falhas e pontos a melhorar.

Em conversas posteriores, descobrimos que o encenador e a maioria dos actores têm formação superior em encenação e teatro. Nem o encenador nem os actores ganham com a peça. Os €1500 de bilheteira (se esgotarem todos os espectáculos) servirão para a manutenção do espaço, que está a precisar de obras. Em espectáculos fora (se existirem) já dividirão o dinheiro entre todos.

Fotografia do segundo ensaio

No Domingo, fotografei apenas com a 50mm e com a 85mm. Criei corredores entre as cadeiras para me movimentar, para conseguir facilmente mudar de posição ou simplesmente recuar.

Pensei em levar a 70-200mm f/4L, e estou certo que tiraria alguma boas fotos com ela. Mas sabia que não iria encontrar a mesma luz, e não queria fotografar apenas parte do ensaio. Assim, ficaram por fotografar caras a curta distância.

A luz estava parecida, apenas com a adição de um segundo projector num mastro. Mas, desta vez, o encenador ligou e desligou luzes, variou a potência de cada uma. A luz tornou-se ainda mais variável, e muito mais extrema. A luz fortemente avermelhada tornou-se 100% vermelha.

No pior caso, o actor que dialoga com a vela ficou iluminado apenas pela vela. Consegui duas fotos imperfeitas antes de a vela se apagar, e de o actor acabar o monólogo em completa escuridão.

Acabei a fotografar em modo manual, com algum sucesso. Frequentemente, as mudanças de luz aconteciam no início das cenas, por causa do encenador, ou por os actores mudarem de posição. Primeiro, media a luz na cara, ajustava a exposição, e fotografava a cena com essa exposição.

Mais tarde, durante a escolha das fotografias, percebi que o truque falhou quando a luz diminuiu lentamente ao longo das cenas, de forma não imediatamente perceptível. Tirei 593 fotos, e escolhi 243 entre boas fotografias duplicadas, em vez de escolher a foto menos má. Publico 59.

Referências

Peça “OTELO (Ensaios Sextas, Sábados e Domingos)”. Espectáculos em Maio de 2014: dias 8,9,10,11, 16,17,18, 23,24,25 às 21h30.

Companhia de teatro da SMUP, Sociedade Musical União Paredense:

Elementos do grupo:

blogroll

social