Cantar a Quinta da Paramuna

É quase hora de almoço nos Amiais quando a Mariana chega ao pé de mim. Esteve a falar com os mordomos, que têm dúvidas se o concerto pode ser na igreja. Receiam que o concerto interfira com os fiéis que vêm à igreja deixar a esmola. Combinaram voltar a falar às 15h, uma hora antes do concerto.

Sinto-me a afundar. Não podemos tocar na igreja? Mas foi mesmo para isso que viemos cá!

A insustentável leveza da música

Relembro a improvável conjugação de vontades que nos trouxe até à beira deste concerto.

Tudo começou numa conversa de mulheres, que fez redescobrir um texto escrito há vinte anos pela Ti Elvira. O texto celebra a forma como o Ti Zé de Almeida liderou a recuperação da primeira capela dos Amiais. A história é particularmente grata à Aline, filha do Ti Zé de Almeida. A Ti Elvira queria que o texto tivesse sido cantado no rancho, mas ninguém lhe conseguiu transformar o texto em música de rancho, e o texto ficou perdido numa gaveta.

A pedido da Aline, a Ti Elvira voltou a escrever o texto, que sabia quase de cor. Depois, a Aline desafiou Fabião Coutinho a tornar o texto mais cantável. O Fabião é um poeta popular que toca no Grupo de Música do CPCD, o mesmo grupo que tocou no 2º Festival da Abóbora em Real.

Estávamos no início do ano quando a Aline pediu ao primo César para tentar musicar o texto. O César andou no Conservatório, toca vários instrumentos e adora música popular, mas nunca tinha escrito música. O César escreveu a música para o texto “População dos Amiais” do Fabião, depois de aprender a usar um software adequado para escrever as partituras. Mas depois inspirou-se e escreveu mais três músicas. Mais tarde, mostrou as quatro partituras à prima Catarina, que ajudou a sistematizar a escrita musical.

Começou a falar-se a sério em tocar na festa de Agosto dos Amiais, enquanto o César continuava a refinar as músicas. O César contactou os mordomos para propor um concerto na igreja. Em vez de ser algo informal como no ano passado, desta vez queríamos constar do programa das festas.

Quem é que estava disponível para ir tocar aos Amiais? O Rafael, o César e o pai tinham acabado de tocar juntos há poucas semanas atrás, em dois lares de terceira idade. Eram os únicos que estavam à vontade para assumir o desafio. No cartaz, ficou anunciado “Rafael Baptista e Companhia, com apresentação de um poema de Elvira Carneiro para a Quinta da Paramuna”.

Depois, o César andou a convencer a Aline a cantar o texto. Mas ela estava pouco convencida, e passou o tempo a tentar convencer o Rui a cantar. O Rui anda a aprender a cantar, mas prefere cantar outro tipo de músicas. Acabou por se deixar convencer por ser neto do homenageado, por ser numa igreja, e por precisar da prática.

Enterrada até às orelhas no seu curso de Sociologia e nas suas actividades de Verão, sem tocar órgão há meses, a Mariana foi a mais renitente. Só poucas semanas antes da festa é que conseguiu tempo para começar a praticar as músicas.

E só ontem ao fim da tarde, na casa da Miquelina nos Amiais, é que o grupo se juntou para o primeiro e único ensaio. Experimentaram o amplificador novo que o César tinha trazido, descobriram que não havia microfone, e ensaiaram juntos as músicas dos Amiais.

Um olhar sobre o espaço

Volto a olhar para a Mariana, em desespero. Não podemos deixar esta confusão para a última hora. Os músicos não podem estar indecisos quando for altura de montar o material, e eu também preciso de pensar onde vou estar e como vou fotografar. Para complicar ainda mais, o César fez-me prometer que ia filmar o concerto.

No ano passado, o coreto provou que não é um bom local para pequenos concertos. As pessoas dispersam-se, e as conversas impedem os outros de ouvir. Fora do coreto, nem sequer se percebe que está alguém a tocar.

Tinha acabado de fotografar a procissão e a banda. Olho em frente. Na sala debaixo do coreto, os músicos da banda estão a almoçar. Será que podemos usar a sala para o concerto? Entramos e olhamos em volta. Há tomadas para o órgão, e as mesas estão colocadas sobre cavaletes. Podemos levantar as mesas e colocar as cadeiras de plástico da missa, se ainda não tiverem sido levadas pela Junta de Freguesia. Mas a acústica do espaço é duvidosa.

Mesmo que a comissão de festas tenha dúvidas, decido observar as condições na igreja. Os andores ocupam boa parte do espaço. Mas, se movermos um banco da igreja, podemos aproveitar o espaço de dois corredores e ficar com um quadrado de 3x3 metros, ao lado de um andor.

E as esmolas? Existe uma caixa agarrada à parede, que ficará atrás do grupo, inacessível. Mas, na nave à entrada do altar, existe outra caixa esmolas maior... no chão! Tento levantá-la, e não está agarrada ao chão. Se colocarmos a caixa no corredor, ficará acessível e bem à vista dos fiéis. Já temos uma solução para o problema da comissão de festas.

Saímos em busca da comissão de festa. Será que já foram almoçar? Mas ainda os encontramos no recinto. “Creio que tenho uma solução. Não quer vir até à igreja e validar a nossa ideia”? Voltámos à igreja e explicámos a nossa ideia. “Movemos o banco e a banda fica aqui... e a caixa de esmolas ali.” Depois da ideia aprovada, já fomos almoçar tranquilamente. Sinto-me imensamente satisfeito por ter ajudado a desembrulhar o problema.

A caminho das quatro da tarde

São 15h30 quando começamos a preparar a igreja para o concerto. Tinha pensado encostar o banco à parede, mas descobrimos que o banco cabe na sacristia, libertando mais espaço para os músicos. Vamos buscar cadeiras de plástico para os músicos, que começam a montar os instrumentos. E o César conseguiu um microfone.

Queria filmar o concerto com a pequena Canon IXUS 70, e tinha pensado colocá-la na prateleira aos pés do santo. Tento, mas não consigo apanhar todos os músicos. Olhando em redor, reparo que a caixa de esmolas que tínhamos colocado no meio da igreja parece estar em bom sítio. Funciona, desde que a Aline não saia muito da frente do órgão.

Tiro as lentes fixas do saco, e começo a fotografar com a lente de 20mm. Tiro a primeira fotografia às 15h45, enquanto os músicos ensaiam. É a primeira vez que o grupo toca na igreja, e a primeira vez que o grupo canta com microfone. Já estão algumas pessoas na igreja a assistir ao ensaio.

Um pouco de teatro

Isto de ver os espectáculos do Manuel Jerónimo cria maus hábitos. Lembro-me como em algumas peças os actores vêm buscar o público à porta, e começo a pensar se não podemos fazer o mesmo. Embora nada tenha sido falado antes, pergunto aos músicos com instrumentos acústicos se não querem ir buscar mais público lá fora.

E é assim que o César (viola) e o Rafael (acordeão) vão tranquilamente a tocar até ao coreto, para espanto dos que lá se entretêm a jogar e a conversar. Mas o efeito mais forte é a forma como a música entra pela igreja dentro, quando regressam à igreja ainda a tocar.

Um concerto para os Amiais

O concerto começa mesmo às 16h com algumas músicas tradicionais, para dar tempo a que chegue mais gente. Passados dez minutos a igreja está cheia e o grupo passa ao prato principal.

Primeiro, o Rui lê o texto, sozinho. Depois, canta as quatro canções. Como só há um microfone, não se ouve a Aline a cantar. O cartaz anunciava o poema, mas acho que só agora é que o público percebeu que o poema canta os Amiais.

Continuam com mais canções tradicionais, incluindo originais de Alfredo Marujo, o professor da escola de música Nova Geração onde estuda o Rafael e estudou a Mariana.

Como o Rafael não sabe tocar parte das músicas, toca o reco-reco. Mas toca com tal afinco que o reco-reco se ouve por cima dos outros instrumentos, de uma forma que não ficaria mal num concerto dos Moonspell.

A meio do concerto, ouvem-se barulhos da porta lateral. Uma velhota abre a porta com dificuldade e fica surpreendida com o que se passa na “sua” igreja. Senta-se na primeira fila e assiste a parte do concerto. Depois, deixa a sua esmola na caixa estrategicamente colocada, e sai pouco depois. Está provado que a comissão de festas tinha razão em preocupar-se com a caixa de esmolas.

O alinhamento não tinha sido demasiado preparado. Em particular, o grupo não tinha pensado numa boa forma de acabar o concerto. Sugiro que voltem a cantar as músicas dos Amiais, até porque entretanto foram chegando pessoas. Desta vez há pessoas a tentar cantar com o grupo, usando as folhas com as letras que a Aline tinha espalhado pelos bancos.

O concerto acaba com agradecimentos à autora do texto e a todos os envolvidos, num ambiente de júbilo. Que fizemos nós com este concerto?

Cantar a tradição futura

Arrumamos rapidamente os instrumentos. Poucos minutos depois de ter acabado o concerto, já está reposta a normalidade da igreja, com o banco e a caixa de esmolas de volta ao seu lugar.

Um dos mordomos da festa está visivelmente satisfeito, mas aproveito para confirmar que escolhemos bem o lugar. “Acha que o concerto honrou a igreja?” E o mordomo responde que sim, com um sorriso nos lábios.

Vou até ao coreto para beber uma cerveja. Continuo a pensar na importância do concerto. Só me lembro dos tempos medievais, quando os trovadores nómadas cantavam histórias de aldeia em aldeia. Sinto que o grupo cantou uma história dos Amiais. Uma nova história tradicional.

Encontro o Manuel Luís Ferreira no bar. O Manuel é o director da Biblioteca Municipal de Penalva do Castelo, e a biblioteca tem estado envolvida na recolha de histórias do Concelho. Sei que assistiu pelo menos a parte do concerto. “Manuel Luís, qual é a sua opinião profissional sobre o que aconteceu no concerto?” O Manuel Luís acha as músicas sobre os Amiais importantes, mas não temos tempo de aprofundar a conversa.

Já estamos no carro a caminho de Lisboa quando a Aline conta que, no fim do concerto, ouviu alguém dos Cantos a dizer: “A nossa capela também está em ruínas. Precisávamos de alguém como o Ti Zé de Almeida para a recuperar.” Também se contam histórias para inspirar os outros. Acho que o Ti Zé de Almeida ficaria feliz por inspirar a recuperação de outras capelas.

Os improváveis

Os membros do grupo são familiares do herói do texto, Ti Zé de Almeida.

Músicos:

  • Rafael Baptista (neto), acordeão e reco-reco heavy metal.
  • César Ferreira (sobrinho), guitarra.
  • José Ferreira (cunhado), ferrinhos.
  • Aline Lopes (filha), segunda voz e reco-reco.
  • Rui Rodrigues (neto), voz.
  • Mariana Baptista (neta), órgão.

Textos e músicas:

  • Elvira Carneiro, autora do texto original.
  • Fabião Coutinho, letra da música “Povoação dos Amiais”.
  • César Ferreira (sobrinho), letras e músicas.
  • Catarina Sousa, apoio musical.
  • Aline Lopes (filha), inspiradora de boas vontades.

Série

Este artigo é a parte 3 de uma série:

  1. Grupo Musical 3G Music nos Amiais
  2. Procissão nos Amiais
  3. Cantar a Quinta da Paramuna
  4. Uma Homenagem ao Povo dos Amiais e Quinta da Paramuna

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